No coração do sistema financeiro, o crédito é como o sangue que irriga a economia. Ele move empresas, fomenta investimentos e sustenta a confiança entre agentes que, em última instância, dependem uns dos outros. Mas onde há crédito, há risco — e onde há risco, há sempre a possibilidade de ruína. O chamado risco de crédito, muitas vezes subestimado, é a chance de que uma instituição ou empresa não consiga cumprir com suas obrigações financeiras. Parece simples, mas suas consequências podem ser devastadoras. E os casos recentes das Lojas Americanas e da Light são lembranças vívidas de que até grandes corporações podem desabar sob o peso da má gestão, da falta de transparência e da negligência na avaliação de riscos.
O episódio das Lojas Americanas foi um choque. Em janeiro de 2023, a empresa revelou “inconsistências contábeis” bilionárias que mascaravam a real situação de suas dívidas. Sob a superfície de um grupo sólido e tradicional, descobriu-se uma estrutura corroída por práticas questionáveis de registro financeiro, onde operações de risco sacado — uma forma de financiamento disfarçada — eram tratadas de maneira inadequada. O resultado foi uma implosão da confiança. As agências de rating rebaixaram as notas de crédito da companhia, os investidores se viram com títulos praticamente sem valor, e o mercado, atônito, passou a desconfiar até das empresas mais respeitadas. O caso revelou o perigo de se confiar apenas na reputação e nas aparências, ignorando sinais sutis que indicavam endividamento crescente e balanços pouco transparentes.
Na Light, o drama foi de outra natureza, mas o desfecho, semelhante. A empresa, responsável por distribuir energia a milhões de pessoas, afundou sob o peso de uma dívida impagável e de um modelo de negócio pressionado por perdas não recuperadas e desafios regulatórios. Em 2023, pediu recuperação judicial após admitir a incapacidade de honrar seus compromissos financeiros. O risco de crédito, nesse caso, não veio de fraudes contábeis, mas da deterioração estrutural da capacidade de geração de caixa e da falta de mecanismos eficazes de controle e mitigação do endividamento. A Light, que por anos foi vista como investimento seguro em razão de sua relevância no setor elétrico, mostrou que nem mesmo a solidez de uma concessão pública é garantia de estabilidade quando o endividamento se torna uma espiral e o ambiente econômico é adverso.
Ambos os casos expõem a essência do risco de crédito: a vulnerabilidade que nasce quando a confiança é depositada sem vigilância constante. É comum que investidores e instituições, atraídos por taxas de retorno mais altas, relaxem na análise fundamentalista dos emissores de dívida. O apetite por ganho, somado à crença de que grandes empresas não quebram, cria terreno fértil para surpresas amargas. A armadilha mora justamente aí — na falsa sensação de segurança. Quando o mercado desperta, geralmente é tarde: os papéis perderam liquidez, os valores despencaram e a recuperação judicial transforma direitos em promessas longínquas.
Proteger-se dessas armadilhas exige mais do que prudência; requer método e disciplina. A análise de crédito deve ir além da leitura de um rating ou da confiança em nomes conhecidos. É preciso compreender a real estrutura de capital das empresas, a origem e o custo de suas dívidas, o fluxo de caixa disponível e a transparência das demonstrações financeiras. Governança sólida, auditorias independentes e relatórios claros são pilares que indicam comprometimento com boas práticas. Em contrapartida, sinais de alavancagem excessiva, prazos concentrados, mudanças frequentes de auditoria ou atrasos em publicações contábeis são faróis de alerta que não podem ser ignorados.
Outro ponto essencial é o acompanhamento contínuo. O risco de crédito não é um evento isolado; ele evolui com o tempo. Empresas saudáveis hoje podem se fragilizar amanhã diante de mudanças no cenário econômico, regulações desfavoráveis ou má gestão. Por isso, monitorar indicadores de endividamento, revisões de rating e notícias setoriais é um exercício permanente. A diversificação também é arma poderosa: ao distribuir recursos entre diferentes setores, emissores e prazos, o investidor reduz o impacto de eventuais perdas. E, quando possível, instrumentos de mitigação — como seguros de crédito, garantias e cláusulas de proteção contratual — oferecem camadas adicionais de segurança.
Há, ainda, uma lição que transcende números e balanços: o risco de crédito é, em última análise, um risco de confiança. Ele depende da integridade das empresas e da diligência dos investidores. Quando um elo dessa corrente falha, o sistema inteiro treme. As Lojas Americanas e a Light mostraram que o descuido, a complacência e a falta de transparência custam caro — não apenas aos acionistas e credores, mas à credibilidade do mercado como um todo. Proteger-se, portanto, é um ato de lucidez. É compreender que retorno e risco caminham juntos e que o verdadeiro investidor, seja ele institucional ou individual, deve cultivar o olhar analítico e desconfiado dos velhos banqueiros: aquele que confia, mas verifica; que acredita, mas confirma. Em tempos de volatilidade e narrativas sedutoras, o melhor antídoto contra as armadilhas do risco de crédito continua sendo o mesmo de sempre — informação, análise e prudência.

