A previdência própria dos servidores é, talvez, uma das áreas mais sensíveis da administração pública. Tudo nela exige equilíbrio, técnica e confiança. Quando o governo federal publicou, em 15 de outubro de 2025, a Portaria MPS nº 2.010, o objetivo não era criar uma revolução, mas sim ajustar e aperfeiçoar o caminho traçado pela Portaria nº 1.467/2022, que continua sendo o grande guia dos Regimes Próprios de Previdência Social. A nova norma nasceu da prática: das dúvidas que surgiram, das dificuldades que gestores enfrentaram e da necessidade de dar mais clareza e segurança a quem administra os RPPS.
O texto faz pequenas cirurgias em pontos estratégicos, mas o efeito é profundo. Ele moderniza conceitos, atualiza prazos, reforça responsabilidades e cria instrumentos que tornam a gestão previdenciária mais transparente e previsível. É, acima de tudo, uma portaria que refina a governança previdenciária, buscando harmonia entre técnica, controle e sustentabilidade.
Uma das primeiras mudanças está na definição de remuneração do cargo efetivo. Parece detalhe, mas é fundamental. Até então, havia interpretações diferentes sobre o que entrava no cálculo das contribuições. Agora o conceito está mais claro: remuneração é o vencimento somado às vantagens permanentes e ao subsídio, conforme a lei de cada ente. Essa pequena clareza evita um sem-número de erros e desencontros, tanto no recolhimento das contribuições quanto no cálculo dos benefícios. É o tipo de ajuste que, embora técnico, tem impacto direto no dia a dia dos RPPS.
Outra alteração importante diz respeito ao custeio e aos aportes para o equacionamento do déficit atuarial. A portaria reafirma que qualquer mudança nas alíquotas deve respeitar o prazo de noventa dias para entrar em vigor, mas vai além: esse mesmo critério passa a valer também para os aportes destinados ao déficit. Isso significa que os regimes terão tempo para se planejar, evitando transições bruscas e descompassos entre arrecadação e obrigação. A regra dá mais previsibilidade, um dos elementos mais valiosos na administração previdenciária.
Mas talvez o ponto mais sensível esteja na forma como a nova portaria trata os parcelamentos de débitos previdenciários. O texto torna explícito que o ordenador de despesas deve constar no termo de parcelamento — e isso muda muita coisa. Em outras palavras, quem autoriza a despesa passa a responder diretamente pelo compromisso firmado. É uma medida que reforça a responsabilidade fiscal e impede que o parcelamento se torne uma saída fácil para problemas de gestão. Além disso, o reparcelamento — aquele costume de renegociar o que já foi renegociado — passa a ter limite: só pode ser feito uma vez por débito, com no máximo sessenta prestações. A mensagem é clara: o parcelamento deve ser exceção, não regra.
A portaria também inova ao permitir formas alternativas de equacionamento do déficit atuarial. Agora, regimes que tenham características específicas podem propor planos complementares ou estruturais, desde que baseados em estudo técnico e aprovados pela Secretaria de Regime Próprio e Complementar. Essa abertura é importante porque reconhece que o Brasil é diverso. Há municípios pequenos, com poucos servidores e baixa capacidade de contribuição, e há estados grandes, com estruturas complexas. A norma oferece flexibilidade, mas exige responsabilidade técnica: não basta inventar soluções, é preciso comprovar que elas garantem o equilíbrio atuarial.
Outro ponto que merece atenção está na revisão da segregação de massas, um dos instrumentos mais delicados da previdência própria. A partir de agora, qualquer proposta de revisão precisa vir acompanhada de estudo comparativo, mostrando que o fundo capitalizado está de fato superavitário e que a mudança não colocará em risco a sustentabilidade do regime. É uma exigência que protege o sistema contra decisões apressadas, muitas vezes movidas por conveniência política ou por interpretações simplistas da realidade atuarial.
Na parte de gestão, a Portaria 2.010 também atualiza as regras de certificação dos dirigentes e conselheiros. A validade passa a ser de quatro anos, e a renovação pode ser feita por cursos de atualização ou programas de qualificação continuada. A medida reduz burocracia, valoriza a formação técnica e incentiva uma cultura de capacitação constante, em vez de cursos apenas formais para cumprir exigência.
Mas a maior novidade, sem dúvida, é a criação do Programa de Regularidade Previdenciária (Pró-Regularidade RPPS). É uma espécie de ponte entre o controle e o apoio técnico. A ideia é simples e poderosa: em vez de apenas fiscalizar e punir, o Ministério da Previdência passa a orientar, acompanhar e cooperar com os entes federativos. O programa vai permitir que cada RPPS identifique pendências, corrija irregularidades e mantenha sua conformidade de forma contínua, com transparência e diálogo. A adesão será obrigatória para quem fizer novos parcelamentos com base na Emenda Constitucional nº 136/2025, e opcional para os demais, mas a tendência é que se torne um selo de boa gestão.
No fim das contas, a Portaria 2.010/2025 é mais do que uma atualização técnica — é uma tentativa de consolidar uma cultura de maturidade previdenciária. Ela fortalece o papel dos dirigentes, valoriza o planejamento e coloca a regularidade como um processo permanente, não como um evento pontual. As vantagens são evidentes: mais segurança jurídica, menos improviso, mais controle e, principalmente, mais confiança de quem contribui para o regime.
As consequências também são claras. Gestores precisarão ser mais cuidadosos, as decisões deverão vir acompanhadas de estudos técnicos, e a transparência passará a ser condição indispensável. Não é um movimento de aperto, mas de amadurecimento. E talvez esse seja o ponto mais positivo: a Portaria 2.010 mostra que o sistema de previdência própria no Brasil está evoluindo, aprendendo com a prática e se ajustando para garantir o futuro de quem serve ao público.
Em tempos de desconfiança e de tantas urgências fiscais, é um sinal de responsabilidade. E, convenhamos, é disso que a previdência precisa: menos improviso e mais gestão, menos incerteza e mais compromisso. A Portaria 2.010 chega, portanto, como um lembrete de que o equilíbrio previdenciário não se conquista por decreto, mas com técnica, transparência e tempo — três coisas que, felizmente, o novo texto parece compreender muito bem.