A trajetória do servidor público que ingressou na administração na década de 1980, sob regime celetista, e posteriormente teve seu vínculo transformado em estatutário, configura um dos cenários mais complexos e potencialmente devastadores para a segurança previdenciária. O aparente sucesso de uma ação judicial que reconhece a permanência do vínculo celetista e condena o ente ao pagamento de FGTS representa, na realidade, uma troca de consequências irreversíveis, onde um ganho imediato e transitório oculta a perda catastrófica de direitos previdenciários superiores.
A análise deste processo exige compreender a natureza fundamental da transformação do vínculo trabalhista. A conversão do regime celetista para o estatutário significou muito mais que uma simples alteração contratual. Representou a integração do servidor a um sistema constitucional de proteção social robusto, com a aquisição da estabilidade e, fundamentalmente, a filiação ao Regime Próprio de Previdência Social. Este último aspecto constitui o cerne da questão previdenciária. O RPPS, em contraste com o Regime Geral (RGPS), oferece condições de aposentadoria qualitativamente superiores, frequentemente garantindo proporcionalidade ou integralidade baseada nos últimos vínculos remuneratórios, além do princípio da paridade com os servidores ativos.
A tese que fundamenta a ação judicial – a alegação de que a transformação do vínculo suprimiu indevidamente o direito ao FGTS – apresenta plausibilidade jurídica perante a Justiça do Trabalho. Contudo, esta perspectiva estreita ignora o efeito dominó que uma sentença favorável desencadeará. O cumprimento da decisão judicial implica necessariamente na desconstituição do cargo estatutário e, por consequência lógica e inevitável, na exclusão do servidor do RPPS. A razão é evidente: a condição de segurado do regime próprio está intrinsicamente vinculada à natureza do cargo efetivo. Ao determinar a manutenção do vínculo celetista, a Justiça está, ipso facto, determinando a incompatibilidade do servidor com o sistema previdenciário dos estatutários.
O momento de compreensão tardia geralmente ocorre quando o ente público, em estrito cumprimento da decisão judicial, emite os atos administrativos que concretizam a mudança. A reintegração ao regime celetista e o consequente retorno ao RGPS representam uma transformação radical no projeto de vida previdenciário do servidor. O valor recebido a título de FGTS, ainda que aparentemente vultoso, revela-se ínfimo quando confrontado com a perda da filiação ao RPPS. Substitui-se uma aposentadoria calculada sobre a remuneração integral de servidor por um benefício limitado ao teto do RGPS, que é substancialmente inferior.
Para servidores em fase avançada de carreira, próximos da aposentadoria, o impacto assume proporções dramáticas. Planos de longo prazo, construídos com base nas regras de transição do regime próprio, desmoronam abruptamente. A diferença mensal entre os dois benefícios, projetada ao longo de décadas de aposentadoria, supera exponencialmente o montante único recebido do FGTS. Um cálculo atuarial simples demonstra a desvantagem financeira: o valor presente da renda previdenciária perdida supera em múltiplas vezes o ganho imediato com os depósitos fundiários.
A Emenda Constitucional 103/2019 acrescenta camadas adicionais de prejuízo. O novo regime do RGPS estabelece regras de cálculo notoriamente mais rigorosas, com alíquotas progressivas que não se revertem em benefícios proporcionais. As contribuições realizadas acima do teto do INSS durante o período de vinculação ao RPPS não serão computadas para majorar o valor da aposentadoria, podendo resultar apenas em uma restituição de contribuições, solução financeiramente inferior à manutenção dos direitos no regime próprio.
A questão transcende a esfera individual e alcança consequências sistêmicas. A migração em massa de servidores do RPPS para o RGPS fragiliza a sustentabilidade financeira do regime próprio, afetando negativamente toda a comunidade de segurados. Cria-se um cenário perverso onde uma decisão coletiva, tomada com foco em ganhos de curto prazo, prejudica a saúde financeira do sistema que garantiria aposentadorias mais dignas.
Em última análise, a busca judicial pelo reconhecimento do vínculo celetista configura uma transação existencial profundamente desvantajosa. Troca-se um direito futuro, permanente e vitalício – uma aposentadoria digna no RPPS – por uma indenização retroativa. A aparente vitória na Justiça do Trabalho converte-se em uma derrota estratégica no campo previdenciário. A decisão de ingressar com tal ação deve ser precedida de uma reflexão técnica multidimensional, que pondere não o ressarcimento do passado, mas a segurança econômica do futuro. A verdadeira sabedoria está em reconhecer que certos direitos previdenciários, uma vez alienados, tornam-se irrecuperáveis, e que o clamor por justiça trabalhista pode, paradoxalmente, consumar a maior injustiça previdenciária.